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Pedido de desculpas de Boaventura de Sousa Santos ao Presidente Evo Morales

Boaventura de Sousa Santos
Coimbra, 10 de Julho de 2013

Desculpe, Presidente Evo Morales
Esperei uma semana que o governo do meu paĆ­s pedisse formalmente desculpas pelo ato de pirataria aĆ©rea e de terrorismo de estado que cometeu, juntamente com a Espanha, a FranƧa e a ItĆ”lia, ao nĆ£o autorizar a escala tĆ©cnica do seu aviĆ£o no regresso Ć  BolĆ­via depois de uma reuniĆ£o em Moscovo,ofendendo a dignidade e a soberania do seu paĆ­s e pondo em risco a sua prĆ³pria vida. NĆ£o esperava que o fizesse, pois conheƧo e sofro o colapso diĆ”rio da legalidade nacional e internacional em curso no meu paĆ­s e nos paĆ­ses vizinhos, a mediocridade moral e polĆ­tica das elites que nos governam, e o refĆŗgio precĆ”rio da dignidade e da esperanƧa nas consciĆŖncias, nas ruas e nas praƧas, depois de hĆ” muito terem sido expulsas das instituiƧƵes. NĆ£o pediu desculpa. PeƧo eu, cidadĆ£o comum, envergonhado por pertencer a um paĆ­s e a um continente que Ć© capaz de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune, jĆ” que nenhuma instĆ¢ncia internacional se atreve a enfrentar os autores e os mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas nĆ£o tem qualquer valor diplomĆ”tico mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que, longe de ser um acto individual, Ć© a expressĆ£o de um sentimento coletivo, muito mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadĆ£os indignados que todos os dias juntam mais razƵes para nĆ£o se sentirem representados pelos seus representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razƵes. AlegrĆ”mo-nos com seu regresso em seguranƧa a casa e vibrĆ”mos com a calorosa acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, Senhor Presidente, que, a muitos quilĆ³metros de distĆ¢ncia, muitos de nĆ³s estĆ”vamos lĆ”, embebidos no ar mĆ”gico dos Andes.
O Senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nĆ³s que se tratou de mais um acto de arrogĆ¢ncia colonial no seguimento de uma longa e dolorosa histĆ³ria de opressĆ£o, violĆŖncia e supremaciaracial. Para a Europa, um presidente Ć­ndio Ć© sempre mais Ć­ndio do que presidente e, por isso, Ć© de esperar que transporte droga ou terroristas no seu aviĆ£o presidencial. Uma suspeita de um branco contra um Ć­ndio Ć© mil vezes mais credĆ­vel que a suspeita de um Ć­ndio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa Paulo III, sĆ³ reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537 (bula Sublimis Deus), e conseguiram ser tĆ£o ignominiosos nos termos em que recusaram esse reconhecimento durante dĆ©cadas como nos termos em que finalmente o aceitaram. Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um indĆ­gena num paĆ­s de maioria indĆ­gena. Mas sei que tambĆ©m estĆ” atento Ć s diferenƧas nas continuidades. A humilhaĆ§Ć£o de que foi vĆ­tima foi um ato de arrogĆ¢ncia colonial ou de subserviĆŖncia colonial? Lembremos um outro “incidente” recente entre governantes europeus e latino-americanos. Em 10 de Novembrode 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo ChĆ”vez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase “Por quĆ© no te callas” ficarĆ” na histĆ³ria das relaƧƵes internacionais como um sĆ­mbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potĆŖncias ex-colonizadoras e as suas ex-colĆ³nias. De facto, nĆ£o se imagina um chefe de Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congĆ©nere europeu, quaisquer que fossem as razƵes.
O Senhor Presidente foi vĆ­tima de uma agressĆ£o ainda mais humilhante, mas nĆ£o lhe escaparĆ” o facto de que, no seu caso, a Europa nĆ£o agiu espontaneamente. FĆŖ-lo a mando dos EUA e, ao fazĆŖ-lo, submeteu-se Ć  ilegalidade internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes, o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaƧo aĆ©reo para voos clandestinos da CIA, transportando suspeitos a caminho de GuantĆ”namo, em clara violaĆ§Ć£o do direito internacional. Sinais dos tempos, Senhor Presidente: a arrogĆ¢ncia colonial europeia jĆ” nĆ£o pode ser exercida sem subserviĆŖncia colonial. Este continente estĆ” a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a distĆ¢ncia entre elas e tantos europeus, como eu, que vĆŖem na BolĆ­via um paĆ­s amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades democrĆ”ticas.

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